Onze meses antes de ser executado a tiros em Cuiabá, o advogado Renato Gomes Nery, de 72 anos, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso, entregou ao Conselho Nacional de Justiça uma reclamação em que atribuiu ao desembargador Sebastião de Moraes suposta ligação com um ‘bando especializado em manipular o Poder Judiciário em proveito próprio, em detrimento da aplicação da lei’. Moraes nega a prática de ilícitos.
Renato Nery escreveu. “Se constata visivelmente que sua (do desembargador) conduta é traiçoeira tal qual a do servo Judas na Santa Ceia, última refeição de Cristo e seus apóstolos antes da crucificação decretada por Pôncio Pilatos.” Moraes Filho é desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Ele está afastado das funções desde junho último, por decisão do ministro Luís Felipe Salomão, que foi corregedor nacional de Justiça.
O afastamento do desembargador se deu no âmbito de uma investigação que teve origem nas relações próximas dele com outro advogado, Roberto Zampieri, afamado como ‘lobista dos tribunais’, que também foi executado à bala em Cuiabá, em dezembro do ano passado. No celular de Zampieri, a Polícia encontrou volumoso acervo de mensagens que indicam corrupção e venda de sentenças no Tribunal de Justiça do Estado e inquietam gabinetes de ministros do Superior Tribunal de Justiça ante a suspeita de envolvimento de pelo menos quatro servidores da Corte com o esquema, dois deles já afastados de suas funções.
A representação de Renato Nery contra o desembargador não avançou. Em outubro do ano passado, o ministro Salomão decretou o arquivamento do caso por considerar que o advogado já havia pedido a apuração diretamente ao Conselho Nacional de Justiça e que não havia fato novo a ser investigado.
Para Salomão, se tratava de ‘matéria jurisdicional’. O assassinato de Nery é um mistério.
Ele foi emboscado perto de sua casa. O pistoleiro atirou pelo menos sete vezes no advogado.
A Polícia rastreou ações patrocinadas pelo ex-presidente da OAB-MT para tentar chegar a eventuais executores e mandantes. E descobriu um caso que provocou atrito entre o advogado e Sebastião de Moraes.
A demanda envolve uma disputa de terras que teve início em 1982, sobre uma área de 12.713 hectares. O processo se arrastou por quase 35 anos.
Nesse período, Nery acabou se tornando parte da ação. Ele recebeu as terras como pagamento de honorários.
Na reclamação ao CNJ, o ex-presidente da OAB sugere ‘início de uma devassa para sanear o Poder Judiciário e livrá-lo da endêmica corrupção”. “Que tal apurar os estragos que Judas patrocinou no Tribunal de Justiça de Mato Grosso”, ele recomendou. “Se assim não for fica evidente o que disse Monteiro Lobato a respeito: ‘ou acabamos com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil’ e, neste caso, com o Poder Judiciário, que deveria ser tributário da confiança de toda a sociedade.”
O ex-presidente da OAB alegou que o desembargador teria violado seus deveres funcionais ao decidir no bojo de um recurso, apesar de ter se declarado impedido por ter atuado no mesmo processo quando era juiz de primeiro grau. Moraes também teria participado de dois outros julgamentos relacionados ao mesmo caso.
Depois de o ministro Salomão haver ordenado o arquivamento de sua reclamação, Nery retornou ao órgão de correição do Judiciário. Segundo ele, “após o primeiro decreto de arquivamento, o desembargador Sebastião intensificou desmandos”.
No entendimento de Nery, o desembargador se tornou “um relator carrasco de todas ações e recursos derivados da Ação de Reintegração de Posse onde ele mesmo prolatou sentença”. “É suficiente fazer uma análise de seu empenho para forçar a competência e julgar recurso extraído de processo ligado diretamente ao que julgou quando juiz singular”, acusou Renato Nery. “Neste aspecto se constata visivelmente que sua conduta é traiçoeira tal qual a do servo Judas na Santa Ceia na última refeição de Cristo e seus apóstolos antes da crucificação decretada por Pôncio Pilatos”, escreveu o advogado.
Na representação, Nery afirmou que o desembargador fazia parte de um “bando especializado em manipular o Poder Judiciário em proveito próprio, em detrimento da aplicação da lei”. “É um metamorfoseado freudiano que diz ter a ficha funcional imaculada, prega a moral e os bons costumes para esconder a sua personalidade torta”, seguiu Nery em suas acusações ao magistrado.
Em outro trecho ele se reportou a uma frase que teria sido dita por Moraes . “É de sua autoria a afirmação escatológica que compromete toda a Instituição a que pertence: ‘Judas, para trair Jesus, fez estágio no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, que certamente deve tê-lo como mestre’.”
E sugeriu. “Que tal se mandar apurar os estragos que Judas patrocinou no Tribunal de Justiça de Mato Grosso! A sanha pelo poder o levou ao escárnio.”(Estadão/Pepita Ortega e Fausto Macedo)